quinta-feira, 7 de julho de 2016

Todas as cores do mundo, o diário de uma adolescente lésbica

Cap 1  a descoberta

Já não é fácil ter 16 anos, morar na periferia de uma grande cidade e ser pobre. Todos cobram responsabilidades de adulto, como trabalhar, manter a casa em ordem, ir à escola, tirar boas notas. Sem contar aquelas pequenas, porém significativas expectativas sociais, as quais todos temos que nos encaixar: andar na moda, ser magra, bonita. Sufocante. O mundo parece ameaçador pra quem nasce se encaixando em padrões convencionais, imagine pra quem nasceu diferente, gostando de namorar pessoas do mesmo sexo!
Meu nome é Márcia, todos me chamam de Ma.
Vou contar minha história pra que o mundo sinta um pouco o que sinto, chore e sorria comigo. E especialmente sinta o que é sofrer, apenas por aceitar ser quem você é. Ninguém nasce, cresce e um dia pensa: vou sofrer bullyng, andar na rua com medo,  ter que aprender logo cedo que o mundo é cruel com as diferenças.
Eu ia à igreja com minha mãe e meu pai. Éramos evangélicos. Sempre gostei de agradar meus pais. Gostava de ver o olhar de satisfação da minha mãe quando  via meu boletim, e ouvir os comentários da minha avó sobre como eu era uma boa e comportada menininha. Na igreja eu cantava e era bastante elogiada.
Com 10 anos, comecei a perceber que minhas amigas da escola falavam de meninos e ficavam interessadas. Eu não me interessava por nada. Apenas cumpria meus deveres escolares, passeava com minha mãe, com meus irmãos. Quando completei 13 anos, eu mesma comecei a me sentir diferente, pois enquanto minhas amigas se apaixonavam, davam seus primeiros beijos, eu nem sequer sentia uma pontadinha de interesse pelo universo masculino nesse sentido. Eu tinha amigos, gostava deles. Eu tinha um amigo em especial chamado Thiago. O Thiago não era alvo do interesse feminino, era “estranho”. Tinha um cabelo fedido e um chulé do cão. Andava com as calças que eu acho que tinham sido do bisavô dele. Era inteligente, jogava vídeo game e lia muito. Todo sábado eu ia pra casa dele pra fazer qualquer coisa, especialmente falar mal dos outros. Parece que éramos peças que estavam sobrando de um quebra cabeça qualquer. Era meu único e melhor amigo. Assistíamos 100 vezes ao  mesmo filme de comédia e ríamos todas as vezes.
Um dia a mãe dele entrou na sala  e disse: Thiago, olha o bolo de chocolate que eu fiz pra você e sua namorada.  Minha cara derreteu e caiu. Eu olhei pra ele que ficou vermelho feito uma pimenta e abaixou os olhos.  Meu Deus, será que éramos namorados? Será que aquilo era namorar? Será que eu teria que um dia inevitavelmente beijar na boca dele, senão não seriamos mais nada?  Mas eu não queria beijar o Thiago, e se ele gostasse de mim e ficasse para sempre magoado.
Porque eu não sentia interesse em beijar nenhum menino? Será que eu era lésbica?
Eu era apenas uma adolescente, e não tinha que ficar pensando nisso agora.

Que  absurdo um pensamento desses passar na minha cabeça, só podia ser algum espírito do mal assoprando bobagens no meu ouvido
Eu não queria perder meu amigo, e não queria namorar com ele. Resolvi conversar com ele, mas parece que ele ficou com vergonha de mim para sempre.
Eu  fiquei sozinha, acho que ele gostava de mim de maneira diferente.
O tempo passou e fui para o ensino médio. Conheci uma nova amiga e fiquei entusiasmada.  Wélida era divertida, simpática e muito diferente de mim. Fazia amizade com toda a escola. Ela era popular, linda mesmo, e diferente do meu querido amigo que me abandonou, tinha o cabelo cheiroso e não tinha chulé.
O melhor de tudo era que eu podia freqüentar a casa dela sem medo de sermos confundidas com um casal, afinal não éramos lésbicas, Deus me livre, o que era uma coisa totalmente fora de cogitação na minha vida. Eu lia a bíblia e sabia que essas coisas não de Deus.
Fazíamos muitas coisas juntas. Fazíamos as unhas, íamos ao cinema, dormíamos uma na casa da outra e ela frequentava a igreja também. A Wélida tocava guitarra e eu cantava. Eu arrumava o cabelo dela e lhe fazia a maquiagem.  Era perfeito.
Um dia, ela toda alegre  veio me contar que estava interessada por um garoto da escola. Falou por horas da beleza e simpatia do maldito indivíduo. Meu coração inexplicavelmente partiu em um milhão de pedacinhos e evaporou do meu peito. Minha cabeça ficou vazia, e tudo ao meu redor começou a perder o brilho, o cheiro, a graça.
Fui pra casa e não tinha ninguém pra conversar.  Na igreja sempre diziam que todos os nossos problemas podemos entregar nas mãos de Deus. Fui orar. Perguntei pra Deus o que era aquilo que eu estava sentindo, mas não obtive resposta.
Porque eu sofria tanto por causa de uma menina? Eu nunca ia contar esse segredo pra ninguém. Eu ia esperar passar e tinha a certeza que Deus iria me ajudar.
E se eu estivesse apaixonada por uma menina? Isso seria sinal de que sou uma adolescente lésbica? Seria uma fase? Eu já conhecia de cor todo o discurso da minha mãe se fosse contar ela: “Isso é coisa do Satanás, vamos contar pro seu pai, pro pastor e fazer uma corrente de oração aqui em casa. Ungiriam-me com óleo santo, e eu seria proibida de sair de casa. E o Pior de tudo, o mais arrasador seria se a Wélida soubesse. Nunca mais ela falaria comigo e eu certamente morreria.
Por que coisas ruins como essa acontecem com gente boa como eu? Não maltrato os animais, gosto de crianças, ajudo meus pais, sou estudiosa. Eu destruiria a vida de todos os que esperam que eu seja apenas mais uma garotinha normal.
Os nossos sentimentos, as vezes são como colares muito apertados, ou espartilhos 5 vezes menores que o nosso tamanho.
Minha amiga continuou indo à minha casa, mas eu já não era a mesma. Evitava contato visual, e não queria mais ir dormir em sua casa. Ela percebeu. Estranhamente nunca mais falou no maldito rapaz, e eu nem perguntei. Ela me olhava e perguntava a cada cinco minutos o que estava acontecendo.
Eu tive a brilhante idéia de pedir aos meus pais para me mandarem para um acampamento bíblico nas férias. Assim ficaria longe dela e me concentraria nas leis de Deus.
Passei uma droga de mês rodeada por garotas. De biquíni, de calcinha, de camisola.
Aquele parecia o acampamento do Satanás.
Definitivamente, eu era lésbica. Eu era a droga de uma adolescente lésbica e evangélica.
Esse diário, é o relato do inicio do pequeno inferno em que minha vida se transformou.
Hoje, adulta que sou, penso o quanto eu poderia ter evitado toda a angústia que passei, apenas lutando por mim mesma, aceitando que cada pessoa é responsável por sua alma, e que a principal pessoa no mundo que devemos zelar pela felicidade absoluta somos nós mesmos. Nossos pais, a igreja, a escola e a sociedade e as a maioria das religiões cumprem seu papel de fabricarem humanos iguais. O medo da diferença mata, literalmente











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