Todas as cores do mundo, o diário
de uma adolescente lésbica
Cap
1 a descoberta
Já
não é fácil ter 16 anos, morar na periferia de uma grande cidade e ser pobre.
Todos cobram responsabilidades de adulto, como trabalhar, manter a casa em
ordem, ir à escola, tirar boas notas. Sem contar aquelas pequenas, porém
significativas expectativas sociais, as quais todos temos que nos encaixar:
andar na moda, ser magra, bonita. Sufocante. O mundo parece ameaçador pra quem
nasce se encaixando em padrões convencionais, imagine pra quem nasceu
diferente, gostando de namorar pessoas do mesmo sexo!
Meu
nome é Márcia, todos me chamam de Ma.
Vou
contar minha história pra que o mundo sinta um pouco o que sinto, chore e
sorria comigo. E especialmente sinta o que é sofrer, apenas por aceitar ser
quem você é. Ninguém nasce, cresce e um dia pensa: vou sofrer bullyng, andar na
rua com medo, ter que aprender logo cedo
que o mundo é cruel com as diferenças.
Eu
ia à igreja com minha mãe e meu pai. Éramos evangélicos. Sempre gostei de
agradar meus pais. Gostava de ver o olhar de satisfação da minha mãe quando via meu boletim, e ouvir os comentários da
minha avó sobre como eu era uma boa e comportada menininha. Na igreja eu
cantava e era bastante elogiada.
Com
10 anos, comecei a perceber que minhas amigas da escola falavam de meninos e
ficavam interessadas. Eu não me interessava por nada. Apenas cumpria meus
deveres escolares, passeava com minha mãe, com meus irmãos. Quando completei 13
anos, eu mesma comecei a me sentir diferente, pois enquanto minhas amigas se
apaixonavam, davam seus primeiros beijos, eu nem sequer sentia uma pontadinha
de interesse pelo universo masculino nesse sentido. Eu tinha amigos, gostava
deles. Eu tinha um amigo em especial chamado Thiago. O Thiago não era alvo do
interesse feminino, era “estranho”. Tinha um cabelo fedido e um chulé do cão.
Andava com as calças que eu acho que tinham sido do bisavô dele. Era
inteligente, jogava vídeo game e lia muito. Todo sábado eu ia pra casa dele pra
fazer qualquer coisa, especialmente falar mal dos outros. Parece que éramos
peças que estavam sobrando de um quebra cabeça qualquer. Era meu único e melhor
amigo. Assistíamos 100 vezes ao mesmo
filme de comédia e ríamos todas as vezes.
Um
dia a mãe dele entrou na sala e disse:
Thiago, olha o bolo de chocolate que eu fiz pra você e sua namorada. Minha cara derreteu e caiu. Eu olhei pra ele
que ficou vermelho feito uma pimenta e abaixou os olhos. Meu Deus, será que éramos namorados? Será que
aquilo era namorar? Será que eu teria que um dia inevitavelmente beijar na boca
dele, senão não seriamos mais nada? Mas
eu não queria beijar o Thiago, e se ele gostasse de mim e ficasse para sempre
magoado.
Porque
eu não sentia interesse em beijar nenhum menino? Será que eu era lésbica?
Eu
era apenas uma adolescente, e não tinha que ficar pensando nisso agora.
Que absurdo um pensamento desses passar na minha
cabeça, só podia ser algum espírito do mal assoprando bobagens no meu ouvido
Eu
não queria perder meu amigo, e não queria namorar com ele. Resolvi conversar
com ele, mas parece que ele ficou com vergonha de mim para sempre.
Eu fiquei sozinha, acho que ele gostava de mim
de maneira diferente.
O
tempo passou e fui para o ensino médio. Conheci uma nova amiga e fiquei
entusiasmada. Wélida era divertida,
simpática e muito diferente de mim. Fazia amizade com toda a escola. Ela era
popular, linda mesmo, e diferente do meu querido amigo que me abandonou, tinha
o cabelo cheiroso e não tinha chulé.
O
melhor de tudo era que eu podia freqüentar a casa dela sem medo de sermos
confundidas com um casal, afinal não éramos lésbicas, Deus me livre, o que era
uma coisa totalmente fora de cogitação na minha vida. Eu lia a bíblia e sabia
que essas coisas não de Deus.
Fazíamos
muitas coisas juntas. Fazíamos as unhas, íamos ao cinema, dormíamos uma na casa
da outra e ela frequentava a igreja também. A Wélida tocava guitarra e eu
cantava. Eu arrumava o cabelo dela e lhe fazia a maquiagem. Era perfeito.
Um
dia, ela toda alegre veio me contar que
estava interessada por um garoto da escola. Falou por horas da beleza e
simpatia do maldito indivíduo. Meu coração inexplicavelmente partiu em um
milhão de pedacinhos e evaporou do meu peito. Minha cabeça ficou vazia, e tudo
ao meu redor começou a perder o brilho, o cheiro, a graça.
Fui
pra casa e não tinha ninguém pra conversar.
Na igreja sempre diziam que todos os nossos problemas podemos entregar
nas mãos de Deus. Fui orar. Perguntei pra Deus o que era aquilo que eu estava
sentindo, mas não obtive resposta.
Porque
eu sofria tanto por causa de uma menina? Eu nunca ia contar esse segredo pra
ninguém. Eu ia esperar passar e tinha a certeza que Deus iria me ajudar.
E
se eu estivesse apaixonada por uma menina? Isso seria sinal de que sou uma adolescente
lésbica? Seria uma fase? Eu já conhecia de cor todo o discurso da minha mãe se
fosse contar ela: “Isso é coisa do Satanás, vamos contar pro seu pai, pro
pastor e fazer uma corrente de oração aqui em casa. Ungiriam-me com óleo santo,
e eu seria proibida de sair de casa. E o Pior de tudo, o mais arrasador seria
se a Wélida soubesse. Nunca mais ela falaria comigo e eu certamente morreria.
Por
que coisas ruins como essa acontecem com gente boa como eu? Não maltrato os
animais, gosto de crianças, ajudo meus pais, sou estudiosa. Eu destruiria a
vida de todos os que esperam que eu seja apenas mais uma garotinha normal.
Os
nossos sentimentos, as vezes são como colares muito apertados, ou espartilhos 5
vezes menores que o nosso tamanho.
Minha
amiga continuou indo à minha casa, mas eu já não era a mesma. Evitava contato
visual, e não queria mais ir dormir em sua casa. Ela percebeu. Estranhamente
nunca mais falou no maldito rapaz, e eu nem perguntei. Ela me olhava e
perguntava a cada cinco minutos o que estava acontecendo.
Eu
tive a brilhante idéia de pedir aos meus pais para me mandarem para um
acampamento bíblico nas férias. Assim ficaria longe dela e me concentraria nas
leis de Deus.
Passei
uma droga de mês rodeada por garotas. De biquíni, de calcinha, de camisola.
Aquele
parecia o acampamento do Satanás.
Definitivamente,
eu era lésbica. Eu era a droga de uma adolescente lésbica e evangélica.
Esse
diário, é o relato do inicio do pequeno inferno em que minha vida se
transformou.
Hoje,
adulta que sou, penso o quanto eu poderia ter evitado toda a angústia que
passei, apenas lutando por mim mesma, aceitando que cada pessoa é responsável
por sua alma, e que a principal pessoa no mundo que devemos zelar pela
felicidade absoluta somos nós mesmos. Nossos pais, a igreja, a escola e a
sociedade e as a maioria das religiões cumprem seu papel de fabricarem humanos
iguais. O medo da diferença mata, literalmente
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